Naquela época ainda existia a ponte aérea de São Paulo para o Rio. Lá estava eu de malinha e paletó para uma reunião na sede do sistema Globo de Rádio. Era gerente regional de jornalismo em São Paulo. Alguém, bateu nas minhas costas. Era um homem madurão, bem barbeado, com bigode dos filmes românticos da década de 50, sapatos e calças brancas e um alinhadíssimo blazer azul marinho. Devia ter uns 70 anos. Sou o Cony, me disse com um sorriso cativante. Ele voltava para casa depois de uma palestra em São Paulo e eu ia para um almoço… com ele. Com sua verve inigualável disse que seria mais barato para a empresa ficarmos em São Paulo e almoçar por aqui. Não era possível. Iríamos estabelecer os parâmetros de um novo programa, o ‘Liberdade de Expressão’, um quadro novo dentro do Jornal da CBN, com a participação de outro jornalista consagrado, Artur Xexéo, que eu acompanhava desde os tempos do ‘Jornal do Brasil’ e naquele momento editor de ‘O Globo’. Posteriormente o programa ganhou a participação da Viviane Mosé, culta, combativa e que deu uma nova dinâmica.
Carlos Heitor Cony era meu conhecido da literatura e do jornalismo. Antes do vestibular tinha lido vários livros de autores mundiais reescritos e resumidos por ele. Daí para frente li alguns romances como Pilatos e seu maior sucesso Quase Memória. Mais recentemente lia seus comentários na página 2 da Folha de São Paulo. Com ele aprendi também expressar uma ideia em apenas três parágrafos, ainda que sem o brilhantismo do Cony. Os encontros eram diários na ‘CBN’ e a atuação do Cony era o elemento desestabilizador do programa. Irreverente, irônico, bem humorado, corajoso, culto e gentil. Era o carro chefe dos assuntos em pauta. Falava o que pensava e não se cansava de dizer que com mais de 70 podia falar o que quisesse. O ‘Liberdade de Expressão’ saiu do rádio para dois livros publicados pela editora Saraiva. Eles renderam palestras no ‘Itaú Cultural’ e sessão de autógrafos. Diante do membro da Academia Brasileira de Letras, eu era apenas uma sombra. Cony tinha que ser ajudado a entrar e sair dos lugares tal a admiração que despertava. O triunvirato seguiu firme com apresentações em seminários corporativos e universitários em São Paulo, Bahia e Minas Gerais.
Tive o prazer de andar com ele várias vezes pelo Rio de Janeiro. Tinha uma história para cada canto da cidade que ele amava, que ser chamada de cidade maravilhosa naquela época não era um estelionato. Em sua narrativa era possível ver a cidade, capital política, cultural e econômica do Brasil. Diante do prédio da ‘Manchete’ falou da revista, da tevê e dos Bloch, seus proprietários. Em um dos prédios da orla lembrou que lá tinha morado o ex-presidente Juscelino Kubitschek, seu amigo pessoal. Contou das noitadas que viveram juntos e da reação da esposa do presidente, dona Sara, que fechava a porta e não deixava o marido entrar em casa. Ficava no capacho. Cony e aí???? Muita risada e completava, passava lá punha ele no meu carro e rodava até o dia clarear. Na guarnição do exército contou como sua filha foi sequestrada, ameaçada, para tentar calar o pai, um crítico da ditadura militar. Nessas idas e vindas, com a maior naturalidade contou que sofria de um câncer, e fez uma série de piadas sobre ele. Driblava até a morte. Parafraseando o verso da música, mais que seu leitor eu virei seu fã.
Por Heródoto Barbeiro
Perfil de Heródoto Barbeiro
Heródoto Barbeiro é jornalista, âncora do Jornal da Record News e do R7, diariamente as 21h. Ex-apresentador do Roda Vida da TV Cultura e do Jornal da CBN. Autor de vários livros na área de treinamento, história, jornalismo e budismo.