Acho que essa foto estampou quase todas as campanhas de combate à fome que eu já vi. Também deve ter passeado por entre as páginas de quase todas as minhas apostilas de Geografia do Ensino Fundamental. E vou arriscar dizendo que, realmente, a fotografia se fez a expressão maior da fome na África. Perdão: Kevin Carter a fez.
O fotógrafo de origem sul-africana viajou ao Sudão para testemunhar o que mais uma guerra civil tinha deixado (sim, mais uma, porque o país vive em guerra há décadas). Kevin e mais alguns amigos fotógrafos, que formavam o Bang Bang Club, aprontaram seus equipamentos e foram à procura dos melhores cliques para montar uma foto-reportagem. Em uma de suas buscas, Carter se deparou com o que seria o alto (e o baixo) de sua carreira.
Era uma criancinha. Arrastava-se ao chão, parecia agonizar. Sua aparência esquelética era tão gritante quanto sua fome. Logo atrás, um abutre particularmente feio e com cara de vou-te-comer-já-já assistia discreto à criança se arrastar. E, observando a cena, estava Kevin. Aguardou por vários minutos para ver se a ave abria as asas (quem sabe a foto ficaria mais chocante?). Desistiu. Fotografou e foi-se.
A foto ganhou destaque na edição de março de 1993 do The New York Times e foi a responsável pela ascensão de Carter como fotógrafo. Em 1994, Kevin ganhou o Prêmio Pulitzer de Fotografia.
(Pra você ter uma noção do quanto a foto foi prestigiada, o Pulitzer é a maior premiação do ramo, uma espécie de Oscar da Fotografia. Né coisa fraca não.)
Mas a história não foi tão florida assim, cheia de altos, prêmios, confetes e “vivas!”. A foto foi também o grande baixo de Kevin. Assim como você deve ter se perguntado quando conheceu a história do registro, muitos também se perguntaram por que Kevin Carter não ajudou o garoto. Por que, sei lá, ele não largou a câmera e o levou a um abrigo? Por que ele se preocupou mais em localizar o melhor ângulo do que em salvar a criança? Kevin foi deveras criticado quanto à sua atitude. Criticado o bastante, talvez, para que meses após ter sido premiado ele se suicidasse. Em junho de 1994, o fotógrafo morreu. Levou seu carro a um local propositalmente escolhido e deixou que uma mangueira levasse monóxido de carbono do escapamento ao interior do veículo.
Em seu bilhete de suicídio estava o seguinte: “Estou deprimido, sem telefone, sem dinheiro para o aluguel, sem dinheiro para a manutenção dos filhos, para as dívidas. Dinheiro! Estou atormentado pelas lembranças vividas dos assassinatos e dos cadáveres da ira e da dor… Das crianças feridas e que morrem de fome, dos loucos do gatilho leve, com frequência da polícia, dos assassinos e verdugos.” Não há nenhuma menção à possível morte do garoto, mas a mídia da época aproveitou o fato para dar uma conotação mais dramática à sua morte.
O que aconteceu com a criança da foto?
Tanto quanto sobre sua postura, Kevin também foi perguntado sobre o destino da criança. É de se imaginar o que aconteceu minutos depois do clique. Baseando-se pela aparência do garotinho e pelo olhar vou-te-comer-já-já do abutre, dá pra arriscar que o fim foi de morte para a criança. Mas não, ela não morreu. Sobreviveu à ave e à fome e ainda viveu alguns anos. Segundo seus pais, Kong Nyong morreu há 5 anos, vencido por uma alta febre. Olha aí o pai do menino:
Olhe bem, eu não sei o que o fotógrafo realmente sentiu após fazer o clique. Ninguém sabe. Mas todas as fontes que consultei para estudar o caso afirmaram que Kevin ficou depressivo, arrependido, perdido. Imagino… Deve ter se sentido tão vazio quanto a barriga da criancinha. O arrependimento de não ter sido a salvação da criança certamente contribui para sua queda, mas não só eles. Problemas familiares e financeiros podem ter lhe motivado a cometer o suicídio. Enfim, é muito difícil afirmar ao certo.
Lições que devemos tirar do caso
Robert Capa, fotógrafo húngaro e testemunha de muitas guerras, é dono da seguinte frase: “Se sua foto não está boa o suficiente, você não está perto o suficiente”. Ele não estava se referindo, acredito, à distância física apenas, mas sim ao quão estreita pode ser a relação entre o fotógrafo e o caso. Kevin se envolveu tanto com a criancinha e o abutre que sua foto ganhou prestígio, aplausos e “vivas!”.
Ok, foi um belo de um clique, meu senhor. A foto foi boa, Robert Capa. Mas me responda: esse envolvimento todo e muito é necessário? É conveniente? Tenho de me vestir de profissional apenas, só porque estou sendo pago pra fazer o que sei fazer? Até onde posso ir, enquanto fotógrafo ou fotojornalista? Até quantos minutos posso esperar o abutre abrir as asas? Essas são algumas questões que ainda permanecem em debate e devem estar presentes à todo momento em nossa mente se quisermos fazer um jornalismo sério e autêntico.
Uma história que virou filme
Um longa sobre a carreira dos quatro fotógrafos do Bang Bang Club e sua ida ao Sudão foi lançado em 2010. O filme tem o mesmo nome do grupo e é uma adaptação do livro autobiográfico The Bang-Bang Club: Snapshots from a Hidden War. Assista o trailer clicando aqui.
Por Natália Noronha.
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Perfil de Natália Noronha
Vivo passeando entre música, jornalismo e poesia, e vez em quando encontro um ponto de intersecção entre os três. É aí que eu me realizo. Tenho fascínio pelo novo – a mesmice me é agoniante – e tento aplica-lo no que faço. Novas melodias, novas formas de poema, novas maneiras de se fazer notícia e de escrever. Sou Natália Noronha, estudante de jornalismo na UFRN, administradora do Blog Fala, foca!, quase-cantora e quase-poeta… Até sair do quase tenho muito que aprender.
Creio que ele tenha sim, ajudado aquela criança, mas diferente de muitos ele não quis se engrandecer… Acredito que suas palavras da carta, retrata a impotência de alguém que esteve próximo aquela realidade e que não pode fazer muito por aqueles que sofria. Ele fotografou aquilo certamente para concientizar o mundo, do quanto somos egoístas e indiferentes aos nossos semelhantes. Ele fala do dinheiro indignado, pois por causa deste maldito, nos tornamos MONSTROS IMPIEDOSOS E ASSASSINOS INESCRUPULOSOS. Vocês não tem sensibilidade… É tudo uma questão de percepção. Julgaram a ” suposta” atitude de Kevin e nenhum de vocês sequer pensaram em como podiam se unir e abraçar essa causa, ao invés disso sensacionalizam por causa da desgraça do poder, glamour, reconhecimento e dinheiro!
concordo com você!
Carter não ajudou a criança, não precisava, no braço da criança mostra uma pulseira branca que mostra que aquela criança já era assistida pela ONU, estava próxima a uma zona de distribuição de alimentos. A criança morreu adulta em 2006 por conta de uma febre muito alta.
Kevin não pode lidar com a pressão de uma imprensa que queria transformar um heroi em vilão